O STF, em Medida Cautelar no HC 159.731/São Paulo, através de decisão monocrática da lavra do Ministro Celso de Melo, concedeu a liberdade provisória ao impetrante, abordando alguns temas importantes e que recorrentemente são cobrados nas provas de concurso, como tráfico de drogas, tráfico privilegiado, prisão em flagrante, e conversão dessa em prisão preventiva.
A decisão tratava de indivíduo que foi preso em flagrante por tráfico ilícito de entorpecente na forma do artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/2006, por estar em posse de 33 “eppendorfs” (pinos) de cocaína, totalizando 25, 5 gramas da referida droga. O juiz de 1º grau, ao receber a notícia da referida prisão, converteu a mesma em prisão preventiva, que foi discutida nas diversas instâncias até chegar no STF.
A despeito de vários aspectos processuais analisados na questão, esta postagem se concentrará nos pontos nevrálgicos que mais são cobrados em prova.
A CF/88, ao tratar do tráfico de drogas, no artigo 5º, XLIII, afirma que:
“A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. (Grifo nosso).
A partir desse norte constitucional, a Lei de Crime Hediondo (Lei nº 8072/1990), em seu artigo 2º, afirma que:
“Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I – anistia, graça e indulto; II – fiança”.
Há de se observar que a presente redação desse artigo se deu após ampla discussão doutrinária e jurisprudencial sobre possibilidade de concessão de liberdade provisória e progressão de regime nos crimes definidos como hediondo, chegando-se assim à redação dada pela Lei nº 11.464/2007, que ao alterar a Lei nº 8072/90, passou a prever a possibilidade de concessão de liberdade provisória, além de progressão de regime nos citados crimes.
Nesse sentido, a decisão de manutenção de eventual prisão por tráfico ilícito de entorpecente, a priori, deve ser analisada a partir do balizamento legal posto no Código de Processo Penal.
A despeito do exposto, a Lei nº 11.343/2006, no seu artigo 44 e parágrafo único, afirma que:
“Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos”.
“Parágrafo único. Nos crimes previstos no caput deste artigo, dar-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico”. (Grifo nosso).
A partir dos textos legais, a doutrina e jurisprudência se dividem em pelo menos duas posições, ou seja, os que entendem que mesmo nos casos previstos nos artigos 33, caput e § 1º, e 34 a 37 é possível a concessão de liberdade provisória, por força da Lei nº 11.464/2007; e os que entendem não se possível a concessão de liberdade provisória nos casos citados.
Além dessa discussão, há a divergência sobre os critérios para a adequação ao tipo legal da conduta do indivíduo que é flagrado na prática do crime de tráfico ilícito de entorpecente, senão vejamos:
O art. 33, caput, e § 1º, da Lei nº 11.343/06, é um tipo misto alternativo, ou seja, o indivíduo que for pego em qualquer um dos verbos nucleares estará em flagrância do referido crime, a despeito de qualquer outro elemento secundário que possa envolver a situação, como a quantidade da droga envolvida.
Porém, a partir do § 4º, do art. 33, surgiu a celeuma quanto ao enquadramento da conduta do indivíduo pego traficando droga, bem como das consequências processuais da mesma, principalmente no que tange às medidas cautelares de cerceamento de liberdade.
O referido parágrafo prevê que:
“Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”.
Apesar do artigo tratar de causa de diminuição de pena, apresentando o “tráfico privilegiado”, a doutrina e jurisprudência ampliaram os efeitos do referido privilégio para conceder ao indivíduo outras garantias além da exposta.
O referido § 1º, como visto, prevê como requisitos para a incidência do privilégio, os seguintes fatores:
- Primariedade;
- Bons antecedentes;
- Não dedicação a atividades criminosas, e;
- Não integração à organização criminosa.
A partir desses parâmetros, parte da doutrina e da jurisprudência, com base nos princípios da inocência de da liberdade, passaram a entender que o enquadramento nesse parágrafo afastaria a hediondez do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, bem como a imposição do disposto no artigo 44 da Lei de Drogas, cabendo à Polícia Judiciária, por ocasião da investigação e/ou Prisão em Flagrante; ao MP, por ocasião da denúncia e manifestação pré-processual ou na fase processual; e ao Juiz, em decisões, afastar (primariedade/bons antecedentes), ou provar (dedicação a atividade criminosa/organização criminosa), para manter as imposições legais no que tange às medidas cautelares cerceadoras da liberdade.
A decisão sob análise, ou seja, a Medida Cautelar discutida no HC 159.731/São Paulo, apontou como fundamentos dessa posição, entre outros, os seguintes fundamentos:
- A Necessidade de demonstração de fundamentos concretos da conduta do indivíduo;
- Idoneidade jurídica das razões que fundamentem as medidas cautelares, devendo-se evitar pressuposições baseadas no “direito penal simbólico” e no “direito penal do inimigo”;
- O efetivo reconhecimento da presença dos pressupostos da prisão preventiva;
- A análise de parametrização com as decisões tomadas pelo STF, enquanto guardião da Constituição Federal;
- E a quantidade de droga apreendida, que, por si, não pode ser parâmetro para o devido enquadramento.
Analisemos duas situações hipotéticas, com o fim de identificar como se aplica todo esse conteúdo na prática de possíveis questões de prova:
1ª Situação:
Um indivíduo foi pego com certa quantidade de droga pela Polícia Militar em uma avenida que é conhecida como um ponto de venda de droga da referida cidade, motivo pelo qual foi dada voz de prisão em flagrante e apresenta a ocorrência à Delegacia de Polícia da Circunscrição.
O Delegado de Polícia, com base nos depoimentos policiais, e da confirmação preliminar da droga como sendo cocaína, instaurou inquérito com base no flagrante, apresentando, em seguida, o indivíduo ao juiz, em audiência de custódia.
Há de se observar que o Delegado de Polícia pode enquadrar o indivíduo no artigo 33, § 4º, apontando a prática de “tráfico privilegiado”, e sugerir a aplicação do benefício de diminuição de pena previsto no referido artigo.
Porém, por se tratar de um caso afeto à aplicação da pena e dos efeitos processuais cautelares que refogem à atuação da autoridade policial, o momento primevo para a análise, salvo melhor juízo, seria o da comunicação da prisão, quando o juiz deve analisar o enquadramento – tráfico comum ou privilegiado; e/ou as medidas cautelares devidas – a conversão do flagrante em prisão preventiva, ou a concessão de liberdade provisória, senão vejamos:
O magistrado, ao receber a comunicação da prisão e apresentação do preso, deve analisar a situação conforme o disposto no artigo 310 do Código de Processo Penal, ou seja:
- I – Relaxar a prisão ilegal;
- II – Converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão;
- III – Conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Combinando o dispositivo legal, com a posição jurisprudencial do STF, e partindo-se do pressuposto que a prisão foi legal, chega-se ao seguinte parâmetro, que deve ser visto pelo magistrado para chegar a uma decisão no que tange à medida cautelar:
- O indivíduo é primário?
- Tem bons antecedentes?
- Não se dedica a atividades criminosas?
- Não integra organização criminosa?
Além disso, há de se observar a quantidade de droga, cuja subjetividade marca a decisão, não havendo um parâmetro para se definir até que ponto ela passa a caracterizar uma garantia da ordem pública que suporte uma prisão preventiva, como se viu na decisão sob estudo.
A partir da conjugação desses fatores, o juiz vai definir se reconhece o tráfico ilícito de entorpecente descrito no artigo 33, caput, e § 1º, da Lei 11.343/06, justificando, com base nos dados fáticos, a necessidade da prisão preventiva, sob os fundamentos do artigo 312 do CPP; ou irá apontar a situação de “tráfico privilegiado”, concedendo liberdade provisória, com a discussão suplementar da possibilidade de concessão ou não de fiança, por força do art. 44 da Lei 11.343/06.
2ª Situação:
A Delegacia de Polícia (Civil ou Federal) da Cidade “x” recebe uma denúncia de tráfico, e a partir de uma Verificação Procedência de Informação, instaura um inquérito policial, chegando à conclusão que se trata de uma organização criminosa altamente especializada, que se dedica ao tráfico ilícito de entorpecente, com efetiva e engendrada separação de tarefas dos componentes do grupo, em verdadeira estrutura empresarial.
Ao fim do inquérito duas situações podem ocorrer:
Na primeira, a Autoridade Policial, com base nos dados colhidos na investigação, sabe que uma carga de droga chegará a sua circunscrição, onde todos os indivíduos da organização, cada um na sua função, estarão preparados e a postos para o referido recebimento.
A Autoridade Policial, então, designa que seus agentes se posicionem em cada local onde estariam os integrantes da organização, e, no momento em que o veículo em que a carga de droga é transportada por um dos indivíduos da organização é interceptado, determina que seja dada ordem de prisão em flagrante, que se estende a todos os integrantes do grupo, pela própria construção do tipo do artigo 33, como tipo misto alternativo, além da efetiva comprovação da participação de todos os integrantes da organização, inclusive no momento do flagrante, e a apreensão comprovada de substância entorpecente com um dos integrantes do grupo.
Nessa situação, observa-se que por afastar-se do disposto no § 4º, do artigo 33, não há de se falar em “tráfico privilegiado”, cabendo à autoridade judiciária, em sede de audiência de custódia, com base no artigo 310, verificar a legalidade da prisão; verificar, ainda, apontada a legalidade da prisão, a possibilidade de conversão da prisão em flagrante em preventiva.
Particularmente, haja vista os elementos fáticos que apontam para a efetiva prática de tráfico (Art. 33, e /ou § 1º, da Lei 11.343/06), a existência efetiva da atuação de organização criminosa (Art. 33, § 4º, a contrario sensu), a necessidade de preservação da ordem pública (Art. 312 do CPP), bem como o dispositivo do Art. 44 da Lei 11.343/06, entendemos pela confirmação da legalidade da prisão em flagrante, e pela devida conversão dessa em prisão preventiva, conforme o artigo 310, II, do CPP.
Ou, em uma segunda hipótese, a Autoridade Policial, nas mesmas circunstâncias, já representa pela prisão preventiva dos componentes da organização criminosa, com os mesmos pressupostos supracitados para a conversão da prisão em flagrante em preventiva.
Nesse segundo caso, pela análise prévia dos fatos pelo juiz, não havendo nenhuma intercorrência que altere o quadro fático, cabe ao magistrado apenas a análise da legalidade no cumprimento da decisão, confirmando a decisão da medida cautelar já decretada.
Não se pode olvidar que há muitas outras discussões em torno do tema, mas com o exposto, tem-se um panorama sobre o tema, que possibilita a solução de várias questões de prova, sendo um norte para o aprofundamento do assunto.
Nos encontramos na próxima postagem quando discutiremos algumas questões sobre o tema.
Bons Estudos.